terça-feira, 9 de junho de 2020

O paradoxo da defesa da democracia brasileira



Nestas últimas duas semanas desencadeou-se as primeiras chuvas do que parece – e
pessoalmente torço que seja – uma tempestade há muito guardada na sociedade. Nos Estados Unidos, terra do imperativo Tio Sam, a morte de mais um homem negro por policiais racistas serviu de estopim para uma onda de desobediência civil, manifestações, confrontos e protestos. O que começou em Minneapolis se espalhou por todo o país e mostrou a reação em seus dois tipos: o prefeito democrata e progressista de Minneapolis chorava pela morte de Floyd durante o dia e a noite ordenava a polícia que reprimisse com bastões e bombas aos manifestantes; Trump e os republicanos durante o dia chamaram os manifestantes de baderneiros(ou como Trump mesmo disse: “thugs”) e durante a noite enviaram a Guarda Nacional para reprimir os manifestantes.

A indignação rapidamente transformou-se em revolta. O Terceiro Distrito Policial de
Minneapolis foi destruído e tomado. Barricadas foram feitas no território tomado pelos
revoltos e a cidade-irmã, Saint Paul, saqueou delegacias levando equipamentos para os
revoltos em Minneapolis. No restante do país as manifestações pacíficas e ainda tímidas foram reprimidas com bombas e até mesmo tiros. Somente no primeiro dia das manifestações fora das cidades-irmãs, sete pessoas foram baleadas.

Estes ventos de revolta contra a repressão estatal e o racismo policial se espalharam pelo
restante do mundo. No total 317 cidades localizadas em três continentes (Américas, Europa e Ásia) registraram protestos em solidariedade a Floyd, e no caso da América Latina em especial, como no México e Brasil, em solidariedade e revolta a jovens mortos recentemente pela polícia corrupta e militarizada.

No Brasil estes ares de revolta misturaram-se a indignação frente a ineficácia proposital do
governo federal contra o covid-19 que até o presente momento registra 37 mil mortes
notificadas e um número alto de subnotificações, devido a falta de testes. Junta-se isto aos
protestos semanais dos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro desde o início da pandemia, protestos marcados pela escala gradual de retórica golpista e de ataques violentos a jornalistas e profissionais da saúde, especialmente a mulheres, como a agressão de um funcionário do governo federal contra enfermeiras no Dia do Trabalho. Tudo isto gerou de forma espontânea a mobilização de setores civis da sociedade, notoriamente dos coletivos antifascistas das torcidas organizadas dos principais clubes de futebol do país, de estudantes universitários e artistas.

O que mais chamou-me a atenção e me fez ter este impulso para escrever isto foi o grupo
pioneiro destas manifestações em defesa da democracia brasileira. A primeira manifestação não foi organizada pelos partidos de oposição ou mesmo grupos conhecidos como a OAB – estes se contentavam em distribuir notas de repúdio semanais – tampouco as militâncias como o MST ou MTST, e sim torcedores ligados a grupos antifascistas cujos fins originais é conter grupelhos neonazistas que desejam imitar os ultras dos times europeus. Estes torcedores uniram-se apesar da rivalidade de seus clubes em São Paulo e Rio de Janeiro e entraram em confronto com a PM e os bolsonaristas. No dia seguinte outros grupos da sociedade civil, em especial os estudantes universitários, ativistas e artistas, organizaram manifestações nos dias 02, 06 e 07 deste mês, recebendo então apoio de parte dos partidos e movimentos políticos de oposição ao atual governo.

A palavra de ordem central destas manifestações é: defesa da democracia.
Porém, nossa democracia tem problemas cruciais, Bolsonaro e seus aliados estão onde estão por conta desta democracia fadada ao fracasso. Como dizia Carlos Drummond de Andrade: o Brasil é o país dos experimentos fracassados.

Nosso voto é obrigatório em um país de 209 milhões de habitantes. Nosso sistema de voto é proporcional a população e temos inúmeros partidos que se coligam para eleger as mesmas figuras, o sistema proporcional garante que candidatos menores sejam eleitos nas costas dos maiores. Há pouco contato entre o eleitor e o eleito. Na verdade, durante as eleições municipais vota-se no primeiro que lhe aparecer, pois não há esperança de que algum candidato consiga fazer alguma mudança ou projeto bom, ou será corrupto e ineficaz ou será ineficaz por depender da maioria corrupta e ineficaz. Durante as eleições presidenciais milhões são obrigados a votar, escolhem então o que mais lhes impressiona com sua retórica. 

Fernando Collor e Jair Bolsonaro são um exemplo de presidentes eleitos por impressionarem seu público com discursos cheios de pompa sobre honestidade, patriotismo e o que mais for da moda. Lula, mesmo após o Mensalão, foi reeleito, pois seu discurso cabia bem. José Serra, mesmo após o caso das sanguessugas – e bem, mesmo sendo o José Serra – chegou ao segundo turno em 2006, pois seu discurso cabia bem – e em ambos os casos citados, porque milhões foram obrigados a votar, obrigados a escolher candidatos péssimos de partidos caricatos e sem projetos de metapolitica ou mesmo de realpolitik – é indiscutível que mais uma autocracia dos milicos seria novamente um fiasco ao país. Mas defender a conservação da democracia brasileira, assolada desde os anos 80 pela ineficácia e corrupção do Congresso, dos governadores e pela demagogia dos principais concorrentes a presidência é também estúpido.

Somente aos partidos cabe-se a conservação dessa democracia, e estes partidos não
levantarão a voz para questionar que democracia queremos conservar, não irão deixar na
mesa que querem continuar essa democracia de inaptos e corruptos tampouco dar espaço
para vozes que possam propor novos rostos e métodos. E este é o problema destes
movimentos em defesa da democracia que estamos vendo: estão defendendo a democracia sem pensar nas suas falhas e vícios, estão esquecendo que o fato de a Direita estar no poder e seus bichos escrotos estarem saindo dos esgotos é justamente devido a ineficácia da nossa democracia feita de cima para baixo, que força milhões a jogar a cada 2-4 anos o joguete democrático dos partidos que dançam no teatro que chamamos de Congresso, que nos força a ser governados por cegos guiando loucos desde Fernando Collor. 

Texto de: Luciano Fontenele
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