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Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito.

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terça-feira, 16 de junho de 2020

1968 e 2013: As Revoluções Que Não Aconteceram




Desde o final da Segunda Guerra Mundial tivemos um vácuo de revoluções políticas de grande massa como a Revolução Francesa, ou revoluções de vanguarda intelectual como 1820 e 1830 ou mesmo com um partido de vanguarda como as revoluções marxista-leninistas que se espalharam pela Europa Oriental e parte da Ásia durante as décadas de 1910-1940. 

A forma de revolta que se formou no Ocidente, principalmente durante as décadas de 1960-1970, devido a Guerra do Vietnã, a contracultura, o existencialismo e a revitalização do marxismo por parte de Marcuse é essencialmente a indignação frente ao absurdo da vida cotidiana. Os protagonistas são jovens pequeno-burgueses conscientizados pela leitura política e pela tendência da jovem guarda à revolta em relação a velha guarda. Os universitários são os protagonistas na maioria das vezes, estes, solidarizam-se aos trabalhadores das classes mais baixas frente as discriminações socioeconômicas que vivem, afinal, a maioria dos universitários tem origem em famílias que até pouco tempo eram parte das camaradas baixas.

Maio de 1968, na França, é o modelo de ensaio-geral da Revolução que todos os revolucionários, sejam os atuais jovens sejam os agora idosos de 68, sonham em realizar e experimentar. A revolta francesa começou na Sorbonne e rapidamente se alastrou pelas demais universidades, ganhando apoio dos intelectuais ligados à Nouvelle Vague e ao existencialismo sartreano. Foram, obviamente, reprimidos pela polícia. Os trabalhadores vendo que nem mesmo os filhos da burguesia seriam poupados, organizaram-se em greve e durante um mês toda a França foi parada.

Barricadas foram erguidas nas ruas pelos jovens, fábricas fechadas pelos adultos. Durante o dia ouvia-se música e discursos, durante a noite os porcos eram soltos dos currais.

Os ventos de Maio de 68 chegaram ao Brasil no mês seguinte. A União Nacional dos Estudantes e a União Nacional dos Estudantes Secundaristas com apoio dos intelectuais politizados pelo Cinema Novo e a Tropicália tomaram as ruas do país enfrentando a polícia dia e noite. Pelos muros das universidades se lia: O Brasil será o novo Vietnam. 

Toda essa revolta durou até o AI-5, assinado pelo presidente e general Costa e Silva, ou, Bosta e Silva.

Com isso, não se viu uma revolta assim por anos. As manifestações dos anos 80 foram um grande porre de liberdade e contracultura ao invés de uma revolta.

Porém, em 2013, mais especificamente em Junho daquele ano, tivemos o que foi chamado posteriormente de "Jornadas de Junho", ou, um título melhor e que surgiu na época como meme: A Revolta do Vinagre. 

Inicialmente a revolta começou em São Paulo, contra o aumento da tarifa do transporte público por parte do governador do estado Geraldo Alckmin com aval do prefeito Fernando Haddad. O Movimento Passe Livre, formado majoritariamente por estudantes da USP, convocaram as manifestações e foram reprimidos pela PM. Durante uma semana os estudantes confrontaram-se com a PM na Avenida Paulista e adjacentes, pedras contra balas de borracha, paus contra porretes. 

No começo a mídia foi contra os manifestantes, e com isso, influenciou a classe média a condena-los como anarquistas baderneiros que perturbavam nosso belo quadro social, e com isso, a periferia viu as manifestações somente como uma birra de jovens burgueses, seus futuros patrões.

Porém, quando a repressão agrediu e cegou repórteres dessa mesma mídia, tudo mudou. Os jornais passaram a se solidarizar com os manifestantes, os estudantes de outras capitais do país desde o extremo-norte até o extremo-sul foram para as ruas, foram reprimidos igualmente, e então seus pais também foram as ruas. 

Depois de duas semanas de protestos o palácio do governador, o teatro municipal e a sede da prefeitura de São Paulo foram atacados pelos manifestantes, as avenidas e universidades públicas das demais capitais foram ocupadas e transformaram-se em praças de guerra. A PM reprimia cada vez mais e recebia cada vez mais pedras em suas cabeças e gritos de indignação da população. O Congresso Nacional era cercado pelos manifestantes toda noite e o Itamaraty chegou a ser incendiado. Os políticos e partidos se amedrontaram, de repente nenhum congressista faltou as sessões do parlamento, votavam projetos e debatiam como parlamentares de primeiro-mundo. O aumento da tarifa em São Paulo foi revogado, as militâncias partidárias que tentaram se aproveitar das manifestações foram expulsas pelos próprios manifestantes e a revolta voltou-se contra a Copa das Confederações de 2013. 

No auge da revolta a média de manifestantes ia desde 65 mil pessoas até um milhão. Os confrontos com a PM eram diários e envolviam diferentes camadas sociais e organizações, a burguesia e a classe política olhavam para tudo sem reação e tudo indicava que aquele êxtase cortaria uma ou duas cabeças.

Mas não aconteceu.

A Copa do Mundo aconteceu no ano seguinte mesmo com as manifestações continuando, não com a mesma força, mas continuando. Os movimentos liberais apropriaram-se do vácuo de poder gerado pela recusa aos partidos e figuras de poder tradicionais. A desilusão depois de tantos confrontos fez com que a parcela politizada e minimamente letrada dos revoltos fosse substituída por uma parcela mais velha, com pouco conhecimento político que baseava sua indignação e opiniões em valores vagos e saudosismo por tempos que muitos sequer haviam vivido. Três anos depois das Jornadas de Junho um impeachment abalou a Nova República e uma recessão golpeou a classe média que mal tinha duas décadas de existência e cujo poder financeiro dependia exclusivamente do consumo. Cinco anos depois de Junho uma eleição controversa dividiu o país entre os velhos partidos que continuavam focando em discursos caricatos e em um fascismo fantasmagórico contra neoconservadores que enfrentavam um comunismo igualmente ilusório. 


2013 foi o mais perto de uma revolução que o Brasil chegou desde as revoltas estudantis de 1968-1969, foi a maior explosão de expectativas e energia coletiva desde essas mesmas revoltas, mas igualmente foi sucedido pela ressaca e pela precocidade que os rebeldes de 1968 tiveram com a Junta dos Três Patetas. Junho igualmente como o Maio francês ficaram na memória e no imaginário popular, mas também ficaram um tanto esquecidos. As pedras e balas que foram disparadas, as algemas e empurrões proferidos estão distantes cada vez mais, embora volta e meia reaparecem em nossa memória como um flashback quando alguma manifestação é reprimida pela PM devido ao medo da classe política. Para mim, Junho fracassou por não ter aprendido com Maio. Em Maio a palavra de ordem era: "a imaginação ao poder!" ou "o Poder tem o poder, tomem-o!". Era uma rebeldia contra o Estado como um todo, mas não apenas a ele, mas também ao mercado da sociedade do espetáculo, as grandes mídias, a repressão policial, a Direita mas também contra os partidos de Esquerda, e estes rebeldes sabiam disso, tinham consciência de seu inimigo, neste sentido, tinham a ousadia em sua consciência mas não em seus atos. Durante os protestos franceses nenhum prédio do governo, nem mesmo a prefeitura de Paris ou o palácio presidencial que haviam sido abandonados foram atacados. No Brasil não havia essa revolta na consciência mas nas mãos, o poder era atacado mas não pela sua origem maligna ou pela constante repressão policial e sim por vinte centavos, por sua ineficácia que era creditada a determinados partidos e políticos e não a todo o Sistema-Mundo e seus lacaios nacionais e por sua repressão momentânea a uma causa pequena mas justa, ao invés de se revoltarem pela opressão policial constante nas periferias.

Os franceses cuspiram mais ideias do que pedras enquanto aqui jogamos mais pedras do que cuspimos ideias e com isso a imaginação não chegou ao poder e os vinte centavos se transformaram em um real e quarenta centavos(a média da tarifa em São Paulo hoje é de R$ 4,40 e provavelmente continuará aumentando).


Anexos: documentário "Junho" de João Wainer 
Também recomendo o documentário "Junho - O Mês Que Não Terminou" disponível no Canal Curta!.
Quanto ao Maio francês recomendo o documentário brasileiro "No Intenso Agora" de João Moreira Salles; "O Formidável" de Michel Hazanavicius filme que mostra parte da biografia de Jean-Luc Godard durante 1967-1970, incluindo o Maio de 1968 e o livro "1968 - O Ano Que Não Terminou" de Zuenir Ventura.


Imagens:

A Reação

Os Revoltos                                                 

















































Os Oportunistas


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segunda-feira, 15 de junho de 2020

A Nova Direita




Muito se discute hoje, principalmente devido a volta do debate político-ideológico ocasionado pela expansão da internet e a onda populista de Direita (e mais recentemente, de Esquerda, com a ascensão da Esquerda populista no México e Argentina) sobre o que é Direita e Esquerda.

No Brasil, essa discussão ganhou voz após o aparecimento - e não reaparecimento, pois essa Direita não tem nada a ver com a Direita histórica brasileira, cujas origens eram essencialmente católicas e reacionárias tanto ao comunismo quanto ao liberalismo - da (Nova) Direita no país. De repente inúmeras coisas se tornaram sinônimos de comunismo ou petismo no vocabulário nacional e símbolos um tanto fajutos passaram a ser sinônimos do conservadorismo direitista. Para mim, esse boom direitista principalmente devido à internet foi maléfico, talvez o único mérito tenha sido inspirar debates políticos, porém, devido a essa origem rápida e essencialmente ligada a debates em redes sociais, o nível deste debate político é baixo.

 

Muitos dos personagens que discutem conceitos de Direita vs Esquerda ou mesmo de discussões entre direitistas sobre o que é ser de Direita não tem a devida preparação literária-bibliográfica para tal discussão. Para mim há três motivos para isto: a má qualidade do ensino público brasileiro, a falta de interesse em buscar teoria política e conhecimento histórico-cultural e a avalanche de informações que dificulta o discernimento entre o que é fato ou ideologia.

 

Nas últimas eleições, realizadas a quase dois anos atrás, tivemos um congresso majoritariamente novo, com uma facção inédita na assembleia nacional da Nova República: a Direita.

Muitos destes direitistas eram essencialmente bolsonaristas, não possuíam uma visão metapolítica nem um arcabouço ideológico, basearam sua campanha e sua visão de mundo em valores vagos de patriotismo e defesa da família e religião, mas, essencialmente, em termos de realpolitik, estavam lá para apoiar o que Jair Bolsonaro fizesse.

O jogo político rapidamente rompeu essa Direita Bolsonarista. Hoje ainda há deputados e senadores bolsonaristas, mas a maioria mostrou-se na verdade apenas oportunistas que viram uma forma de chegar ao poder, outros, sob justificativa de serem essencialmente liberais e portanto verem o presidente que ajudaram a eleger como uma ameaça a esses valores liberais, tornaram-se uma oposição à Direita, por assim dizer.

 

Mas, bem, o que se define como Direita?

 

No Brasil a Direita desde o Império tinha como pilares o catolicismo apostólico romano, o patriotismo, a oposição ao liberalismo(e com isto ao americanismo também) e a oposição ao comunismo(e aqui refiro-me ao comunismo de fato, aos marxista-leninistas e qualquer derivação que for da moda, como o marxismo-leninismo-maoísmo foi durante os anos 60), além de na maioria dos casos, a defesa da monarquia. Sob esse pilar conservador posso citar que tivemos figuras como Gustavo Corção, Arlindo Veiga dos Santos, Plínio Corrêa de Oliveira, Mario Ferreira dos Santos, Jackson Figueiredo, Plínio Salgado, Gustavo Barroso, José Pedro Galvão de Sousa e Miguel Reale. Provavelmente houveram outros autores conservadores, mas confesso que só tenho conhecimento destes.

Durante os anos 60 a Direita brasileira, que como disse baseava-se no catolicismo e no anticomunismo, teve seu papel como oposição ao trabalhismo de João Goulart e de reação ao Partido Comunista e as Ligas Camponesas. Autores como Plínio Corrêa de Oliveira, Plínio Salgado e Miguel Reale apoiaram o golpe de 1964 em nome do anticomunismo e do patriotismo. Mas mesmo assim, nada tinham a ver com a Nova Direita.

Nos anos 80 a Direita brasileira estava em frangalhos, a maioria de seus autores já haviam falecido e estavam esquecidos, seu nome estava manchado, associado a ditadura que havia se sustentado no poder por meio da repressão policial e de atos institucionais durante vinte anos. Plínio Corrêa de Oliveira fechou-se para círculos católicos deixando de participar da disputa e do debate político. Miguel Reale preferiu focar em sua carreira como jurista desde o final dos anos 70, chegando a participar da elaboração da Constituição de 1988.

Eventualmente o progressismo esquerdista tomou conta do pensamento acadêmico voltado às Ciências Humanas e Sociais e o debate político foi tomado por partidos tradicionais, sem projetos de metapolítica e sem grandes anseios nacionais. Eram sempre os mesmos partidos, sempre os mesmos políticos.

A Nova Direita surgiu um tanto como reação a isto. Por isso ela cospe insultos contra tudo que olha minimamente para a Esquerda e despreza a maioria dos partidos e políticos. Porém, esta Nova Direita nada tem da velha Direita que morreu com o regime que ajudou a parir(o regime militar). A Nova Direita brasileira é algo novo e pior, do meu ponto de vista até mesmo degenerada comparada com sua antecessora.

Estes neoconservadores tem um pensamento essencialmente liberal. Eles se afundam em literatura e pensadores anglo-saxões como Edmund Burke, Adam Smith, Ludwig von Mises, Margaret Thatcher, Ronald Reagan, Roger Scruton, John Locke e outros. Talvez na tradição política-literária anglo-saxã estes autores até sejam conservadores, mas comparados ao conservadorismo latino (e nisto me refiro ao conservadorismo das nações católicas da Europa Ocidental e de suas ex-colônias na América Latina) são liberais.

O conservadorismo latino, e que é de fato o conservadorismo ocidental, é essencialmente católico e reacionário, reacionário ao liberalismo dos autores citados. É um conservadorismo voltado a comunidade orgânica que reinava no Antigo Regime nos países católicos, ao monarquismo tradicionalista, sem o monarca como uma mera figura e sem um parlamento todo-poderoso para limitar o monarca, um conservadorismo que tinha suspeitas quanto ao capitalismo e suas contradições sociais, um conservadorismo que pregava freios e associações contra o Estado e o mercado por meio de corporações e sindicatos. Um conservadorismo que baseava-se na Doutrina Social da Igreja.

Os pilares da Nova Direita são o americanismo, ou seja, a obediência as diretrizes estadunidenses de liberalismo econômico e alinhamento geopolítico ao atual bloco ocidental(América do Norte, Europa Ocidental, Japão, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia, Taiwan e Israel); o sionismo fanático, em que ignora-se qualquer estudo histórico sobre Israel e sua relação para com os árabes e persas pois segundo certos pastores este é o povo escolhido e deve-se defendê-lo cegamente; o protestantismo neopentecostal que incentiva a defesa ao sionismo, ao americanismo e ao moralismo, utilizando-se das Escrituras e do desespero do povo frente a miséria em que vivem. Há também maçons, que são notórios por sua gnose e inimizade com o catolicismo e nacionalismo antiamericanista.

Com isso, dizem-se liberais-conservadores, mesmo estudando majoritariamente autores anglo-saxões e liberais; liberais-conservadores cujos pilares são estadunidenses, incentivados pela Internacional Populista de Steve Bannon; por think-tanks liberais plantados pelo Brasil no começo dos anos 2010; por igrejas neopentecostais de origem estadunidense que mal tem 50 anos de existência e cujo único propósito é propagar o sionismo e apagar o catolicismo nos valores das nações latino-americanas.

Eles nada conservam dos valores e da sociedade brasileira.

São um retalho ideológico em que se afundam em autores liberais anglo-saxões enquanto portam retratos de generais do regime militar, cujo pensamento era positivista e nacionalista apesar dos pesares; apropriam-se da bandeira monarquista mesmo defendendo o liberalismo e aliando-se a maçonaria que enfraqueceram o Império e auxiliaram em sua derrocada; enxergam em tudo o comunismo, mesmo mal tendo ideia do que é o comunismo; defendem Israel e Taiwan por pura birra com a Esquerda; denunciam qualquer coisa como autoritarismo e ameaça estatal enquanto defendem a intervenção militar e a ditadura de 64, incluindo o AI-5, que fora o auge da repressão estatal que tivemos até hoje.(Ironicamente, adoram tanto o regime militar mas esquecem que Ernesto Geisel reconheceu a China continental(comunista) como a Única China, reestabelecendo as relações comerciais e diplomáticas).

 

Para mim não há nada de conservador nesta Nova Direita. São todos liberais que servem a interesses anglo-saxões e sionistas. Que se aproveitam da falta de conhecimento do brasileiro comum para trazer o sionismo e revisionismo histórico liberal ao seu pensamento. Pouco estudam e ligam para a História do país e mesmo para as figuras conservadoras que tivemos, preferem adorar o Tio Sam ou mesmo perder-se em devaneios de poder tomar chá como um britânico em uma monarquia liberal.

São caboclos querendo ser ingleses.

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domingo, 14 de junho de 2020

Porquê o Socialismo?



por Albert Einstein

Será aconselhável para quem não é especialista em assuntos económicos e sociais exprimir opiniões sobre a questão do socialismo? Eu penso que sim, por uma série de razões. 

Consideremos antes de mais a questão sob o ponto de vista do conhecimento científico. Poderá parecer que não há diferenças metodológicas essenciais entre a astronomia e a economia: os cientistas em ambos os campos tentam descobrir leis de aceitação geral para um grupo circunscrito de fenómenos de forma a tornar a interligação destes fenómenos tão claramente compreensível quanto possível. Mas, na realidade, estas diferenças metodológicas existem. A descoberta de leis gerais no campo da economia torna-se difícil pela circunstância de que os fenómenos económicos observados são frequentemente afectados por muitos factores que são muito difíceis de avaliar separadamente. Além disso, a experiência acumulada desde o início do chamado período civilizado da história humana tem sido – como é bem conhecido – largamente influenciada e limitada por causas que não são, de forma alguma, exclusivamente económicas por natureza. Por exemplo, a maior parte dos principais estados da história ficou a dever a sua existência à conquista. Os povos conquistadores estabeleceram-se, legal e economicamente, como a classe privilegiada do país conquistado. Monopolizaram as terras e nomearam um clero de entre as suas próprias fileiras. Os sacerdotes, que controlavam a educação, tornaram a divisão de classes da sociedade numa instituição permanente e criaram um sistema de valores segundo o qual as pessoas se têm guiado desde então, até grande medida de forma inconsciente, no seu comportamento social. 

Mas a tradição histórica é, por assim dizer, coisa do passado; em lado nenhum ultrapassámos de facto o que Thorstein Veblen chamou de “fase predatória” do desenvolvimento humano. Os factos económicos observáveis pertencem a essa fase e mesmo as leis que podemos deduzir a partir deles não são aplicáveis a outras fases. Uma vez que o verdadeiro objectivo do socialismo é precisamente ultrapassar e ir além da fase predatória do desenvolvimento humano, a ciência económica no seu actual estado não consegue dar grandes esclarecimentos sobre a sociedade socialista do futuro. 

Segundo, o socialismo é dirigido para um fim sócio-ético. A ciência, contudo, não pode criar fins e, muito menos, incuti-los nos seres humanos; quando muito, a ciência pode fornecer os meios para atingir determinados fins. Mas os próprios fins são concebidos por personalidades com ideais éticos elevados e – se estes ideais não nascerem já votados ao insucesso, mas forem vitais e vigorosos – adoptados e transportados por aqueles muitos seres humanos que, semi-inconscientemente, determinam a evolução lenta da sociedade. 

Por estas razões, devemos precaver-nos para não sobrestimarmos a ciência e os métodos científicos quando se trata de problemas humanos; e não devemos assumir que os peritos são os únicos que têm o direito a expressarem-se sobre questões que afectam a organização da sociedade. 

Inúmeras vozes afirmam desde há algum tempo que a sociedade humana está a passar por uma crise, que a sua estabilidade foi gravemente abalada. É característico desta situação que os indivíduos se sintam indiferentes ou mesmo hostis em relação ao grupo, pequeno ou grande, a que pertencem. Para ilustrar o meu pensamento, permitam-me que exponha aqui uma experiência pessoal. Falei recentemente com um homem inteligente e cordial sobre a ameaça de outra guerra, que, na minha opinião, colocaria em sério risco a existência da humanidade, e comentei que só uma organização supra-nacional ofereceria protecção contra esse perigo. Imediatamente o meu visitante, muito calma e friamente, disse-me: “Porque se opõe tão profundamente ao desaparecimento da raça humana?” 

Tenho a certeza de que há tão pouco tempo como um século atrás ninguém teria feito uma afirmação deste tipo de forma tão leve. É a afirmação de um homem que tentou em vão atingir um equilíbrio interior e que perdeu mais ou menos a esperança de ser bem sucedido. É a expressão de uma solidão e isolamento dolorosos de que sofre tanta gente hoje em dia. Qual é a causa? Haverá uma saída? 

É fácil levantar estas questões, mas é difícil responder-lhes com um certo grau de segurança. No entanto, devo tentar o melhor que posso, embora esteja consciente do facto de que os nossos sentimentos e esforços são muitas vezes contraditórios e obscuros e que não podem ser expressos em fórmulas fáceis e simples. 

O homem é, simultaneamente, um ser solitário e um ser social. Enquanto ser solitário, tenta proteger a sua própria existência e a daqueles que lhe são próximos, satisfazer os seus desejos pessoais, e desenvolver as suas capacidades inatas. Enquanto ser social, procura ganhar o reconhecimento e afeição dos seus semelhantess, partilhar os seus prazeres, confortá-los nas suas tristezas e melhorar as suas condições de vida. Apenas a existência destes esforços diversos e frequentemente conflituosos respondem pelo carácter especial de um ser humano, e a sua combinação específica determina até que ponto um indivíduo pode atingir um equilíbrio interior e pode contribuir para o bem-estar da sociedade. É perfeitamente possível que a força relativa destes dois impulsos seja, no essencial, fixada por herança. Mas a personalidae que finalmente emerge é largamente formada pelo ambinte em que um indivíduo acaba por se descobrir a si próprio durante o seu desenvolvimento, pela estrutura da sociedade em que cresce, pela tradição dessa sociedade, e pelo apreço por determinados tipos de comportamento. O conceito abstracto de “sociedade” significa para o ser humano individual o conjunto das suas relações directas e indirectas com os seus contemporâneos e com todas as pessoas de gerações anteriores. O indíviduo é capaz de pensar, sentir, lutar e trabalhar sozinho, mas depende tanto da sociedade – na sua existência física, intelectual e emocional – que é impossível pensar nele, ou compreendê-lo, fora da estrutura da sociedade. É a “sociedade” que lhe fornece comida, roupa, casa, instrumentos de trabalho, língua, formas de pensamento, e a maior parte do conteúdo do pensamento; a sua vida foi tornada possível através do trabalho e da concretização dos muitos milhões passados e presentes que estão todos escondidos atrás da pequena palavra “sociedade”. 

É evidente, portanto, que a dependência do indivíduo em relação à sociedade é um facto da natureza que não pode ser abolido – tal como no caso das formigas e das abelhas. No entanto, enquanto todo o processo de vida das formigas e abelhas é reduzido ao mais pequeno pormenor por instintos hereditários rígidos, o padrão social e as interrelações dos seres humanos são muito variáveis e susceptíveis de mudança. A memória, a capacidade de fazer novas combinações, o dom da comunicação oral tornaram possíveis os desenvolvimentos entre os seres humanos que não são ditados por necessidades biológicas. Estes desenvolvimentos manifestam-se nas tradições, instituições e organizações; na literatura; nas obras científicas e de engenharia; nas obras de arte. Isto explica a forma como, num determinado sentido, o homem pode influenciar a sua vida através da sua própria conduta, e como neste processo o pensamento e a vontade conscientes podem desempenhar um papel. 

O homem adquire à nascença, através da hereditariedade, uma constituição biológica que devemos considerar fixa ou inalterável, incluindo os desejos naturais que são característicos da espécie humana. Além disso, durante a sua vida, adquire uma constituição cultural que adopta da sociedade através da comunicação e através de muitos outros tipos de influências. É esta constituição cultural que, com a passagem do tempo, está sujeita à mudança e que determina, em larga medida, a relação entre o indivíduo e a sociedade. A antropologia moderna ensina-nos, através da investigação comparativa das chamadas culturas primitivas, que o comportamento social dos seres humanos pode divergir grandemente, dependendo dos padrões culturais dominantes e dos tipos de organização que predominam na sociedade. É nisto que aqueles que lutam por melhorar a sorte do homem podem fundamentar as suas esperanças: os seres humanos não estão condenados, devido à sua constituição biológica, a exterminarem-se uns aos outros ou a ficarem à mercê de um destino cruel e auto-infligido. 

Se nos interrogarmos sobre como deveria mudar a estrutura da sociedade e a atitude cultural do homem para tornar a vida humana o mais satisfatória possível, devemos estar permanentemente conscientes do facto de que há determinadas condições que não podemos alterar. Como mencionado anteriormente, a natureza biológica do homem, para todos os objectivos práticos, não está sujeita à mudança. Além disso, os desenvolvimentos tecnológicos e demográficos dos últimos séculos criaram condições que vieram para ficar. Em populações com fixação relativamente densa e com bens indispensáveis à sua existência continuada, é absolutamente necessário haver uma extrema divisão do trabalho e um aparelho produtivo altamente centralizado. Já lá vai o tempo – que, olhando para trás, parece ser idílico – em que os indivíduos ou grupos relativamente pequenos podiam ser completamente auto-suficientes. É apenas um pequeno exagero dizer-se que a humanidade constitui, mesmo actualmente, uma comunidade planetária de produção e consumo. 

Cheguei agora ao ponto em que vou indicar sucintamente o que para mim constitui a essência da crise do nosso tempo. Diz respeito à relação do indivíduo com a sociedade. O indivíduo tornou-se mais consciente do que nunca da sua dependência relativamente à sociedade. Mas ele não sente esta dependência como um bem positivo, como um laço orgânico, como uma força protectora, mas mesmo como uma ameaça aos seus direitos naturais, ou ainda à sua existência económica. Além disso, a sua posição na sociedade é tal que os impulsos egotistas da sua composição estão constantemente a ser acentuados, enquanto os seus impulsos sociais, que são por natureza mais fracos, se deterioram progressivamente. Todos os seres humanos, seja qual for a sua posição na sociedade, sofrem este processo de deterioração. Inconscientemente prisioneiros do seu próprio egotismo, sentem-se inseguros, sós, e privados do gozo naïve, simples e não sofisticado da vida. O homem pode encontrar sentido na vida, curta e perigosa como é, apenas dedicando-se à sociedade. 

A anarquia económica da sociedade capitalista como existe actualmente é, na minha opinião, a verdadeira origem do mal. Vemos perante nós uma enorme comunidade de produtores cujos membros lutam incessantemente para despojar os outros dos frutos do seu trabalho colectivo – não pela força, mas, em geral, em conformidade com as regras legalmente estabelecidas. A este respeito, é importante compreender que os meios de produção – ou seja, toda a capacidade produtiva que é necessária para produzir bens de consumo bem como bens de equipamento adicionais – podem ser legalmente, e na sua maior parte são, propriedade privada de indivíduos. 

Para simplificar, no debate que se segue, chamo “trabalhadores” a todos aqueles que não partilham a posse dos meios de produção – embora isto não corresponda exactamente à utilização habitual do termo. O detentor dos meios de produção está em posição de comprar a mão-de-obra. Ao utilizar os meios de produção, o trabalhador produz novos bens que se tornam propriedade do capitalista. A questão essencial deste processo é a relação entre o que o trabalhador produz e o que recebe, ambos medidos em termos de valor real. Na medida em que o contrato de trabalho é “livre”, o que o trabalhador recebe é determinado não pelo valor real dos bens que produz, mas pelas suas necessidades mínimas e pelas exigências dos capitalistas para a mão-de-obra em relação ao número de trabalhadores que concorrem aos empregos. É importante compreender que, mesmo em teoria, o pagamento do trabalhador não é determinado pelo valor do seu produto. 

O capital privado tende a concentrar-se em poucas mãos, em parte por causa da concorrência entre os capitalistas e em parte porque o desenvolvimento tecnológico e a crescente divisão do trabalho encorajam a formação de unidades de produção maiores à custa de outras mais pequenas. O resultado destes desenvolvimentos é uma oligarquia de capital privado cujo enorme poder não pode ser eficazmente controlado mesmo por uma sociedade política democraticamente organizada. Isto é verdade, uma vez que os membros dos órgãos legislativos são escolhidos pelos partidos políticos, largamente financiados ou influenciados pelos capitalistas privados que, para todos os efeitos práticos, separam o eleitorado da legislatura. A consequência é que os representantes do povo não protegem suficientemente os interesses das secções sub-privilegidas da população. Além disso, nas condições existentes, os capitalistas privados controlam inevitavelmente, directa ou indirectamente, as principais fontes de informação (imprensa, rádio, educação). É assim extremamente difícil e mesmo, na maior parte dos casos, completamente impossível, para o cidadão individual, chegar a conclusões objectivas e utilizar inteligentemente os seus direitos políticos. 

Assim, a situação predominante numa economia baseada na propriedade privada do capital caracteriza-se por dois principais princípios: primeiro, os meios de produção (capital) são privados e os detentores utilizam-nos como acham adequado; segundo, o contrato de trabalho é livre. Claro que não há tal coisa como uma sociedade capitalista pura neste sentido. É de notar, em particular, que os trabalhadores, através de longas e duras lutas políticas, conseguiram garantir uma forma algo melhorada do “contrato de trabalho livre” para determinadas categorias de trabalhadores. Mas tomada no seu conjunto, a economia actual não difere muito do capitalismo “puro”. 

A produção é feita para o lucro e não para o uso. Não há nenhuma disposição em que todos os que possam e queiram trabalhar estejam sempre em posição de encontrar emprego; existe quase sempre um “exército de desempregados. O trabalhador está constantemente com medo de perder o seu emprego. Uma vez que os desempregados e os trabalhadores mal pagos não fornecem um mercado rentável, a produção de bens de consumo é restrita e tem como consequência a miséria. O progresso tecnológico resulta frequentemente em mais desemprego e não no alívio do fardo da carga de trabalho para todos. O motivo lucro, em conjunto com a concorrência entre capitalistas, é responsável por uma instabilidade na acumulação e utilização do capital que conduz a depressões cada vez mais graves. A concorrência sem limites conduz a um enorme desperdício do trabalho e a esse enfraquecimento consciência social dos indivíduos que mencionei anteriormente. 

Considero este enfraquecimento dos indivíduos como o pior mal do capitalismo. Todo o nosso sistema educativo sofre deste mal. É incutida uma atitude exageradamente competitiva no aluno, que é formado para venerar o sucesso de aquisição como preparação para a sua futura carreira. 

Estou convencido que só há uma forma de eliminar estes sérios males, nomeadamente através da constituição de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educativo orientado para objectivos sociais. Nesta economia, os meios de produção são detidos pela própria sociedade e são utilizados de forma planeada. Uma economia planeada, que adeque a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser feito entre aqueles que podem trabalhar e garantiria o sustento a todos os homens, mulheres e crianças. A educação do indivíduo, além de promover as suas próprias capacidades inatas, tentaria desenvolver nele um sentido de responsabilidade pelo seu semelhante em vez da glorificação do poder e do sucesso na nossa actual sociedade. 

No entanto, é necessário lembrar que uma economia planeada não é ainda o socialismo. Uma tal economia planeada pode ser acompanhada pela completa opressão do indivíduo. A concretização do socialismo exige a solução de problemas socio-políticos extremamente difíceis; como é possível, perante a centralização de longo alcance do poder económico e político, evitar a burocracia de se tornar toda-poderosa e vangloriosa? Como podem ser protegidos os direitos do indivíduo e com isso assegurar-se um contrapeso democrático ao poder da burocracia? 

A clareza sobre os objectivos e problemas do socialismo é da maior importância na nossa época de transição. Visto que, nas actuais circunstâncias, a discussão livre e sem entraves destes problemas surge sob um tabu poderoso, considero a fundação desta revista como um serviço público importante. 

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Einstein escreveu este trabalho especialmente para o lançamento da Monthly Review , cujo primeiro número foi publicado em Maio de 1949. Tradução de Anabela Magalhães. 

O original deste artigo encontra-se

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